segunda-feira, 4 de agosto de 2008

A Ópera da Criação


"Deus é o poeta. A música é de Satanás, jovem maestro de muito futuro, que aprendeu no conservatório do céu. Rival de Miguel, Rafael e Gabriel, não tolerava a preferência que eles tinham na distribuição dos prêmios. Pode ser também que a música em demasia doce e mística daqueles outros colegas fosse aborrecível ao seu gênio essencialmente trágico. Tramou uma rebelião que foi descoberta a tempo, e ele expulso do conservatório. Tudo se teria passado sem mais nada, se Deus não houvesse escrito um libreto (texto ou argumento de uma ópera, opereta ou comédia musicada) de ópera, do qual abrira mão, por entender que tal gênero de recreio era impróprio da sua eternidade. Satanás levou o manuscrito consigo para o inferno. Com o fim de mostrar que valia mais do que os outros e acaso para reconciliar-se com o céu, compôs a partitura, e logo que a acabou foi levá-la ao Padre Eterno (Deus).
- Senhor, não desaprendi as lições recebidas, disse-lhe. Aqui tendes a partitura, escutai-a, emendai-a, fazei-a executar, e se a achardes digna das alturas, admiti-me com ela a vossos pés...
- Não - retorquiu o Senhor -, não quero ouvir nada.
- Mas, Senhor...
- Nada! nada!
Satanás suplicou ainda, sem melhor fortuna, até que Deus, cansado e cheio de misericórdia, consentiu em que a ópera fosse executada, mas fora do céu. Criou um teatro especial, este planeta, e inventou uma companhia inteira, com todas as partes, primárias e comprimárias, coros e bailarinos.
- Ouvi agora alguns ensaios!
- Não, não quero saber de ensaios. Basta-me haver composto o libreto; estou pronto a dividir contigo os direitos de autor.
Foi talvez um mal esta recusa; dela resultaram alguns desconcertos que a audiência prévia e a colaboração amiga teriam evitado. (...)"

-Trecho retirado do livro Dom Casmurro, de Machado de Assis.


É, devia ter havido ensaios. E muitos!

 
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